Por ironia do destino ou, melhor, por vontade dos eleitores portugueses, coube ao Partido Socialista ocupar as responsabilidades do governo nacional no início e, agora, quando atingimos os capítulos finais do já longo processo de construção do IC1/ A28 de Viana do Castelo a Caminha. Em 2001, era António Guterres primeiro-ministro quando foi apresentado o primeiro estudo do traçado, então ainda com várias alternativas possíveis tanto para o troço principal da auto-estrada como para as diversas ligações à EN 13. Aliás, tinha sido um executivo camarário caminhense também socialista que, dois anos antes, tinha intercedido com sucesso pelo prolongamento até ao norte do concelho de uma via que, inicialmente, estava apenas pensada para parar no vale do Âncora, para mais tarde prosseguir até Valença, como estava inscrito no Plano Rodoviário Nacional.
Logo neste dealbar do processo dois erros de base estavam contudo presentes: o primeiro era o sistema de engenharia financeira (SCUTS) que o ministro do PS João Cravinho tinha gizado para acelerar o ritmo de consecução do plano rodoviário e que, entre outras discutíveis soluções, entregava aos grandes consórcios privados toda a gestão das diversas fases que uma obra desta envergadura exige, desde o estudo prévio até à exploração da estrada, passando pelos estudos de impacte ambiental, projecto de execução e naturalmente construção. Segundo erro de base: limitar ao concelho de Caminha uma via rápida há muito exigida e esperada por todos os alto-minhotos de Viana até Melgaço e que só um bairrismo bacoco poderia imaginar dever terminar na fronteira entre Caminha e Cerveira, num lugar chamado… Gouvim.
Como se sabe, coube depois a vez ao Partido Social Democrata de ocupar a cadeira do poder no Terreiro do Paço em 2002, depois de ter feito o mesmo no Terreiro de Caminha pouco tempo antes. Foi pois sob a gestão nacional e local do PSD que se desenrolou o período maior e mais determinante do processo do IC1/A28 e todos sabemos o que aconteceu: o tandem executivo municipal caminhense / secretário de estado do ambiente (hoje, presidente da distrital social-democrata de Viana do Castelo), ignorou arrogantemente as justas e realistas reivindicações dos moradores das freguesias afectadas e os protestos das associações ambientalistas que, note-se, nunca se opondo à construção da estrada, se limitaram a defender o traçado que correspondia ao corredor do PDM de Caminha de 1995. Bem pelo contrário, optaram por vezes pelas mais absurdas soluções (quem não se recorda do inacreditável viaduto sobre a veiga do Coura e a Rede Natura 2000?) e, objectivamente, estiveram sempre do lado da empresa construtora que naturalmente preferia os traçados que implicassem menores custos.
Nesses momentos difíceis, em que sucessivas reprovações técnicas das comissões de avaliação eram sistematicamente ultrapassadas por gravosas decisões políticas e os responsáveis autárquicos e ambientalistas eram intimidados com processos-crime (arguidos com termo de identidade e residência desde há três anos, continuam hoje a aguardar julgamento!), o Partido Socialista, pela voz e presença dos seus dirigentes locais e deputados nacionais, esteve ao lado das populações e, em plena campanha eleitoral autárquica de 2005, a candidatura do PS à Câmara Municipal de Caminha chegou ao ponto de anunciar que, vou citar, “foi possível solucionar definitivamente, o caso da passagem da IC1 pela freguesia de Lanhelas (…) pois iria destruir, de uma forma definitiva, o maior vestígio arqueológico da Península Ibérica, situado no monte Góis. Felizmente tudo terminou em bem. Estão de parabéns os intervenientes, mas sobretudo as populações de Lanhelas e do concelho de Caminha” (site da candidatura, 21-8-2005).
Quando o PS regressou ao poder no início de 2005 eram pois elevadas as expectativas quanto à resolução aceitável do problema do IC1/A 28, mesmo se, como então escrevemos neste jornal, estávamos “conscientes de que não será agora fácil reverter factos consumados e opções já tomadas”. Daí que, embora muito custosamente, nos tenhamos no fundo conformado com a impossibilidade de parar a construção do troço principal que, inaugurado com dispensável pompa em Novembro último, desfeia hoje a outrora bela encosta das margens do vale do Coura. É que neste caso, se tratava inequivocamente de uma opção aprovada à pressa nos últimos dias do governo PSD — é certo que mitigada com uma série de medidas de minimização paisagística, mas nem por isso menos errada ambiental e socialmente e até em termos rodoviários — e sabíamos de antemão que seria muito difícil evitá-la a tempo.
Outro caso, porém, dizia respeito à chamada “Ligação a Caminha” por Vilar de Mouros e Lanhelas até à EN 13 em Gouvim. Aqui as circunstâncias eram substancialmente diversas das do troço principal: não só o processo estava muito mais atrasado temporalmente como, entretanto, sucediam-se as descobertas de insculturas rupestres autenticadas pelos mais credenciados especialistas nacionais e, em Fevereiro de 2006, estava o governo Sócrates há exactamente um ano no poder, um relatório encomendado pela própria Euroscut e assinado por uma reputada doutorada em arqueologia, declarava o Monte de Góios, vou citar, “um dos locais de maior concentração de arte rupestre Pré-Histórica no noroeste de Portugal (…) constitui uma verdadeira surpresa a ocorrência de um “santuário” de ar livre com Arte Esquemática (…) a circunscrição do conjunto do Santuário não está seguramente completa. (…) Há uma forte probabilidade de que o Santuário se distribua mais extensamente pela encosta Sul do Monte de Góis e que jazam ali outras rochas decoradas (…)” ( Relatório técnico-científico …, Profª.Drª Lara Bacelar Alves).
Face a tudo isto, o que seria de esperar do governo do partido cujos responsáveis locais e deputados nacionais tinham estado na rua ao lado das populações gritando com elas “IC1 Assim Não !”? O que seria de esperar do partido cuja recente, embora perdedora, candidatura autárquica tinha afirmado ter resolvido definitivamente o problema? Nada mais, nada menos, que a mesma coragem política que António Guterres e Manuel Maria Carrilho tiveram em 1995 quando fizeram parar, e bem, a construção de uma barragem já meia feita no Vale do Côa para salvar um outro santuário de arte rupestre, actualmente património mundial!
Em vez disso, lamentavelmente, tivemos pouco mais do que nos daria o governo PSD: obtida a confirmação da continuidade futura da auto-estrada até Valença (cumprindo o disposto no Plano Rodoviário Nacional) e quando se esperaria que, face ao valor patrimonial do Monte de Góios e às promessas feitas, se anulasse definitivamente a malfadada “Ligação a Caminha” integrando a solução de uma saída a norte do concelho no contexto do estudo prévio do novo troço, apareceu há uns dias no Governo Civil de Viana do Castelo um qualquer secretário de estado das obras públicas a anunciar envergonhadamente a cedência quase completa aos interesses do costume para grande e justificado contentamento do executivo caminhense. Digo quase completa porque se fala na diminuição de cinco para três faixas de rodagem e, talvez, de um “falso túnel” em parte do traçado mas, não só se desconhece verdadeiramente o que foi agora aprovado oficialmente como, pior ainda, nada nos garante que futuramente as três faixas não sejam alargadas para cinco “se o tráfego o justificar” ou, quem sabe, se nascer um dia destes uma “nova e grandiosa ponte internacional com perfil de auto-estrada” sobre o Minho, para que assim os galegos nem tenham que parar quando vierem às compras… ao Porto.
Entretanto, com cinco ou três faixas, ficaremos com o magnífico maciço granítico do Monte de Góios definitivamente esventrado e patrimonialmente inviabilizado (talvez se possam visitar algumas insculturas rupestres por debaixo de algum viaduto …), uma aldeia circundada por uma auto-estrada a toda a volta (Vilar de Mouros), uma outra emparedada entre a nova via, a EN13 e a linha de caminho-de-ferro (Lanhelas) e, claro, muitos terrenos valorizados para futuros mega-empreendimentos de segunda habitação (e o Porto aqui tão perto…).
Tal como sucede com a reputação, a credibilidade política demora muito a conseguir mas perde-se num ápice. Foi o que agora aconteceu ao Partido Socialista em Caminha que, depois de encerrado o capítulo de uma demasiado longa permanência no poder municipal nas autárquicas de 2001, podia, e devia, assumir sem tibiezas a liderança de um novo projecto político para o concelho que deixasse definitivamente para trás um ultrapassado modelo de suposto progresso assente no betão dos condomínios fechados e na subserviência de uma estância de fim-de-semana, para colocar no centro do desenvolvimento local o ambiente, a cultura, o património e uma economia de serviços turísticos hoteleiros de qualidade, aproveitando as vantagens que a natureza e os nossos antepassados nos legaram.
Refém de um governo tecnocrático e economicista, comprometido com as apostas erradas de um passado eleitoral recente, caído agora nas malhas das promessas vãs, quanto tempo demorará o Partido Socialista de Caminha a recuperar a perdida credibilidade política?